Mesmo com leve queda no número total de casos, 2024 marcou uma intensificação da violência silenciosa contra o Brasil rural; especialistas apontam concentração fundiária, grilagem e impunidade como causas estruturais
Os dados consolidados por monitoramentos independentes e pelo novo Atlas dos Conflitos no Campo Brasileiro deixam claro que a crise agrária permanece crônica: 2024 foi o segundo ano com mais disputas rurais desde o início da série histórica, em 1985. Foram 2.185 conflitos registrados — número apenas abaixo dos 2.250 de 2023 — e 1.768 desses episódios envolveram disputas diretamente relacionadas à terra.
Panorama de 2024: queda numérica, aumento da gravidade
A aparente redução no total de ocorrências não se traduz em segurança para as populações do campo. Em 2024, 904.532 pessoas foram afetadas por conflitos por terra — o maior número da série histórica. Ao mesmo tempo, embora os homicídios tenham recuado (de 31 vítimas em 2023 para 13 em 2024), outros indicadores de violência cresceram de forma preocupante:
- 272 ameaças de morte — o maior registro em uma década;
- 221 casos de intimidação;
- 103 tentativas de homicídio — cerca de 50% a mais que no ano anterior.
Esses números apontam para uma mudança no padrão de violência: menos homicídios registrados, mas mais ações de coerção, pistolagem, despejos forçados e intimidações que corroem vidas, segurança e memória comunitária.
Novas frentes: água, agrotóxicos, desmatamento e incêndios
Além da posse da terra, 2024 trouxe forte crescimento de conflitos relacionados ao meio ambiente e à saúde. Casos envolvendo agrotóxicos saltaram para 276 registros — aumento estimado em cerca de 762% em relação ao ano anterior — com o Maranhão concentrando a maior parte dos episódios (228 casos). Desmatamentos ilegais (209 ocorrências) e incêndios (194) também cresceram, respectivamente, 39% e 113% sobre 2023, com forte presença registrada na Amazônia Legal e em estados como Mato Grosso.
Esses vetores mostram que a crise agrária extrapola a disputa por terra: atinge recursos hídricos, solos, biodiversidade e a saúde de comunidades que dependem desses ecossistemas.
Causas estruturais: concentração fundiária, grilagem e fragilidade institucional
Analistas e organizações que acompanham o tema identificam padrões que se repetem há décadas. A concentração de terra no Brasil, combinada com práticas de grilagem, expansão do agronegócio, interesses de madeireiras e mineração, cria um terreno fértil para conflitos. Ocupações de terra, despejos, destruição de casas e ataques a assentamentos são frequentemente a face visível de um processo mais amplo de expropriação e criminalização da posse popular.
Ao mesmo tempo, a impunidade é um elemento central: muitos registros de violência não avançam para investigação e responsabilização efetiva. Falhas na regularização fundiária, lentidão nas demarcações de terras indígenas e quilombolas, e falhas na fiscalização ambiental contribuem para que os conflitos se perpetuem.
Quem sofre e quais são os impactos
Os primeiros afetados são assentados, pequenos agricultores, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Vivem sob ameaça constante — física, econômica e cultural — e enfrentam despejos, perda de produção, contaminação por agrotóxicos e deslocamentos. Mesmo quando a violência não resulta em mortes, as consequências sociais e psicológicas são profundas: trauma coletivo, perda de memória cultural e desestruturação comunitária.
No plano ambiental, o avanço sobre territórios tradicionais acelera desmatamentos, queimadas e erosão de recursos naturais, comprometendo a sustentabilidade da agricultura familiar e a preservação de biomas essenciais para a mitigação climática.
O papel dos movimentos sociais e a pressão internacional
Movimentos como o MST são protagonistas históricos das ocupações e da luta por reforma agrária e aparecem tanto como agentes de resistência quanto como alvos de criminalização. Eles denunciam concentração fundiária, grilagem, omissão do Estado e violência contra populações vulneráveis, e propõem soluções que passam por reforma agrária ampla, agroecologia e políticas de apoio à agricultura familiar.
Ao mesmo tempo, a visibilidade internacional sobre a Amazônia, clima e biodiversidade aumenta a pressão sobre o Brasil para que haja respostas concretas. Essa pressão externa pode ser um instrumento para exigir fiscalização mais rigorosa e responsabilização de atores econômicos envolvidos em ilícitos ambientais e fundiários.
Caminhos urgentes para evitar a intensificação da crise
Especialistas e organizações apontam medidas convergentes que poderiam mitigar a violência no campo e proteger comunidades:
- Reforma agrária ampla e imediata: regularização da posse, demarcação de terras tradicionais e apoio a assentamentos dignos;
- Fortalecimento institucional: investigação e punição efetiva de crimes fundiários, combate à grilagem e fim da impunidade;
- Políticas de proteção: segurança física e jurídica para povos indígenas, quilombolas, assentados e agricultores familiares;
- Incentivo à agroecologia e práticas sustentáveis, reduzindo dependência de modelos predatórios;
- Transparência e participação social: dados abertos, monitoramento independente e inclusão das comunidades nas decisões fundiárias.
Sem ações estruturais e coordenação entre Estado, sociedade civil e atores econômicos, há risco concreto de agravamento da chamada violência silenciosa — ameaças, intimidações e contaminações que corroem vidas sem necessariamente aparecer nas estatísticas de homicídio.
Conclusão: a crise no campo brasileiro em 2024/2025 confirma que o problema é estrutural e multidimensional. Resolver essa crise exige mais do que políticas pontuais: demanda compromisso com justiça fundiária, proteção dos direitos humanos, preservação ambiental e modelos de produção sustentáveis que assegurem dignidade ao Brasil rural.