Quando o Brasil vira sertão armado: o que é — e por que assombra — o fenômeno chamado Novo Cangaço

Cultura da Violência

Como quadrilhas fortemente armadas transformaram pequenas cidades brasileiras em zonas de guerra — e por que o Estado ainda luta para conter essa nova era do crime organizado

Nas últimas décadas, o Brasil vem assistindo a uma onda de violência que remete — com terrores modernos — aos antigos bandos do interior do país. Denominado “Novo Cangaço”, esse fenômeno envolve quadrilhas fortemente armadas que invadem pequenas e médias cidades, explodem agências bancárias ou carros-fortes, enfrentam a polícia com fuzis, causam pânico na população e fogem com alto grau de organização. Revistas UFRJ+2Correio Braziliense+2

Mas o que está por trás dessas ações? Quais as origens, a estrutura, o impacto social e a resposta do Estado? Este artigo busca oferecer um panorama abrangente e fundamentado do Novo Cangaço — suas origens, modus operandi, controvérsias sobre o uso do termo, casos emblemáticos, implicações para segurança pública e os desafios de combate.

Origens históricas e contexto de emergência

O termo “novo cangaço” evoca os bandos rurais que, nas primeiras décadas do século XX — como o grupo de Lampião — percorriam o sertão nordestino saqueando vilas, tomando cidades, desafiando o poder e impondo terror local. Wikipédia+2Wikipédia+2

Todavia, o fenômeno moderno se distingue por escala, tecnologia, mobilidade e grau de preparo. Segundo pesquisadores, ele emergiu no final da década de 1990 e se consolidou nos anos 2000 como uma nova forma de crime organizado — unindo a brutalidade do banditismo de outrora ao preparo operacional de quadrilhas estruturadas. UFC Brasil+2Defesa em Foco+2

As primeiras ações ocorreram majoritariamente em pequenas cidades do Nordeste, com deficiências evidentes no efetivo policial e infraestrutura de segurança. Com o tempo, essas quadrilhas se tornaram interestaduais, sofisticaram armamentos e passaram a mirar também regiões do Sudeste, Centro-Oeste e Sul — expandindo o alcance do fenômeno. agencia.ufc.br+2Correio Braziliense+2

Um dos nomes frequentemente apontados como precursor dessa nova era foi Valdetário Carneiro — criminoso do Rio Grande do Norte cuja quadrilha praticou diversos assaltos a bancos e transportadoras de valores no Nordeste e deixou seu legado no chamado “neocangaço”. Wikipédia+2Wikipédia+2

O que caracteriza o “Novo Cangaço”: modus operandi e táticas

Os roubos associados ao Novo Cangaço não são meros furtos ou assaltos urbanos. Trata-se de operações planejadas com precisão militar, com atributos que os especialistas consideram típicos de organizações paramilitares. Revista Fórum Segurança+2Defesa em Foco+2

Entre as características mais comuns estão:

  • Domínio temporário da cidade-alvo: bloqueio de vias de acesso, ocupação de pontos estratégicos, e cerco à polícia local. UOL Notícias+2Correio Braziliense+2
  • Uso de armamento pesado e explosivos: fuzis, metralhadoras, detonadores, carros blindados ou adaptados — para combater viaturas, intimidar policiais e destruir cofres. O Globo+2Correio Braziliense+2
  • Divisão de funções e logística eficiente: como em organizações criminosas modernas — há planejadores, atiradores, especialistas em explosivos, pilotos, batedores, vigias. UFC Brasil+2agencia.ufc.br+2
  • Alvos estratégicos e cálculo de custo-benefício: agências bancárias, transportadoras de valores, caixas eletrônicos de cidades do interior, onde o volume de dinheiro e a vulnerabilidade são maiores. Correio Braziliense+2Correio Braziliense+2
  • Rapidez e brutalidade: geralmente as ações ocorrem à noite ou na madrugada, com uso simultâneo de ataques, explosões e confrontos — visando caos, surpresa e mínimo tempo de resposta policial. UOL Notícias+2Voice of America+2

A combinação desses fatores resulta em assaltos que mais se assemelham a operações de guerra urbana do que a roubos comuns — e por isso o termo “Novo Cangaço” passou a ser usado pela mídia, policiais e pesquisadores. Revistas UFRJ+2Defesa em Foco+2

Debate conceitual: “Novo Cangaço” ou “Domínio de Cidades”?

Embora amplamente usado, o termo “Novo Cangaço” não é consensual no meio acadêmico e entre operadores de segurança. Há quem defenda que ele carrega imprecisões históricas e conceituais — e que a designação correta para o fenômeno atual seria Domínio de Cidades. rbi.abin.gov.br+2Revista Fórum Segurança+2

Os críticos argumentam que:

  • O banditismo do início do século XX tinha contexto social, rural e de rebeldia contra restrições do Estado — diferente da lógica profissional, empresarial e urbana do crime organizado moderno. rbi.abin.gov.br+1
  • As quadrilhas atuais possuem estrutura hierárquica, logística complexa e vínculo com facções interestaduais — elementos ausentes nos antigos cangaceiros. Revista Fórum Segurança+1
  • A adoção do termo “novo cangaço” pode romantizar ou simplificar fenômenos complexos, associando-os a um passado histórico específico. rbi.abin.gov.br+1

Por outro lado, defensores do uso do termo apontam semelhanças importantes: o “cerco” a cidades, o terror à população, os saques violentos, a tática de dominação temporária — o que justifica a analogia com os cangaceiros de antigamente. Defesa em Foco+2Blog do O Globo+2

Em suma: a terminologia continua em debate. Mas, independentemente disso, os fatos e o padrão de violência e organização estão documentados.

Casos emblemáticos e dados recentes

O fenômeno deixou um rastro de violência e horror em várias regiões do Brasil. Entre os episódios mais notórios:

  • O assalto ocorrido em Araçatuba (São Paulo, 2021), considerado um dos mais violentos desde 2019: cerca de 20 criminosos, uso massivo de explosivos — o maior já registrado no país desse tipo até então — resultou em mortes e feridos graves. O Globo+2Wikipédia+2
  • Ataques recentes em 2025 em municípios de Minas Gerais, como Guaxupé, onde quadrilhas explodiram agência bancária, atacaram a sede da Polícia Militar e intensificaram o terror local. O Tempo+1
  • O perfil recorrente de alvos: cidades de pequeno ou médio porte, com baixo efetivo policial, vulneráveis — o que evidencia a estratégia de “predação seletiva” dessas quadrilhas. UOL Notícias+2Correio Braziliense+2

Além dos impactos imediatos — destruição de patrimônio, risco a vidas, paralisação da rotina local — há consequências de médio e longo prazo: comunidades aterrorizadas, evasão de moradores, quebra na confiança nas instituições de segurança e migração de uso de dinheiro físico para meios eletrônicos ou digitais em regiões atacadas. Correio Braziliense+1

Quem são os autores: perfil das quadrilhas

Pesquisas recentes destacam que as quadrilhas de Novo Cangaço têm perfil peculiar: não se trata mais de “bando de marginais” improvisados, mas de organizações criminosas estruturadas, com especialização, planejamento e logística de guerra. Revista Fórum Segurança+2Defesa em Foco+2

Alguns traços marcantes:

  • Atuação interestadual: membros viajam entre estados, comandam operações em diferentes regiões. UFC Brasil+2agencia.ufc.br+2
  • Divisão de tarefas: explosivistas, atiradores, batedores e motoristas — o que exige coordenação e comando. Revista Fórum Segurança+2UOL Notícias+2
  • Base de “especialistas”: pessoas que já participaram de outros assaltos semelhantes — a repetição de operações depende de aprendizado e know-how. Wikipédia+1
  • Investimento pesado em tecnologia, armas e logística: para alguns ataques, os custos superam R$ 1 milhão, considerando armas, transporte, explosivos, vigilância prévia e fuga. O Globo+1

Estima-se que muitas dessas quadrilhas estejam associadas — direta ou indiretamente — a facções criminosas maiores, que oferecem estrutura, militantes e apoio logístico para operações de alto risco. UOL Notícias+2UFC Brasil+2

Impacto social e econômico

O Novo Cangaço vai além do roubo de bancos. Suas consequências atingem toda a comunidade local e, em muitos casos, reverberam em província e regiões vizinhas. Entre os principais impactos:

  • Destruição do patrimônio público e privado: explosões, incêndios, destruição de agências, caixas eletrônicos, viaturas de polícia. Correio Braziliense+2O Globo+2
  • Clima de medo, insegurança e instabilidade social: moradores assustados, comércio fechado, evasão de empresas, prejuízo econômico e queda da atividade local. Correio Braziliense+1
  • Desconfiança nas instituições de segurança: o fato de criminosos dominarem uma cidade por horas questiona a eficácia do Estado, abala a credibilidade da polícia e acende debates sobre presença e patrulhamento. Revista Fórum Segurança+2UOL Notícias+2
  • Mudança de comportamento financeiro e econômico: em cidades atacadas, cresce o uso de meios eletrônicos de pagamento — como PIX, bancos digitais ou transferência — por medo de usar dinheiro físico. Correio Braziliense

Em muitas localidades, o trauma permanece. Comunidades que já sofreram esse tipo de ataque enfrentam longos períodos de insegurança, dificuldades de reconstrução e prejuízos econômicos profundos.

A resposta do Estado e os desafios para conter o Novo Cangaço

O combate ao fenômeno envolve múltiplas frentes: inteligência policial, cooperação entre unidades estaduais e federais, mudanças legislativas e aperfeiçoamento da segurança em municípios vulneráveis. No entanto, os desafios são enormes — e as respostas, nem sempre, dão conta da complexidade.

📌 Como o Estado tenta responder

  • Operações policiais integradas: investigação, infiltração, prisões preventivas e desarticulação de quadrilhas — inclusive com atuação de unidades federais quando há crimes interestaduais. Correio Braziliense+2agencia.ufc.br+2
  • Repressão e enfrentamento tático: uso de tropa especializada, grupos de elite, apoio logístico e inteligência para impedir ou responder a ataques. Defesa em Foco+1
  • Monitoramento de “especialistas” em explosivos e armas pesadas, com o objetivo de identificar antecipadamente as quadrilhas antes da ação — como sugerem analistas de segurança. Wikipédia+1
  • Incentivo ao uso de meios eletrônicos e digitais de pagamento nas regiões vulneráveis — como forma de reduzir a circulação de dinheiro físico e, com isso, diminuir o apelo para os criminosos. Correio Braziliense

⚠️ Principais obstáculos

  • Muitas cidades não têm efetivo policial suficiente ou especializado — algo que os criminosos conhecem e exploram. UOL Notícias+1
  • As quadrilhas têm alta mobilidade e usam logística própria — dificultando a prisão apenas com patrulhamento reativo. Defesa em Foco+1
  • A falta de consenso conceitual (Novo Cangaço vs Domínio de Cidades) pode interferir em ações legislativas, tipificação penal e nas estratégias de inteligência. rbi.abin.gov.br+1
  • Recursos e estrutura de segurança desigual entre estados e municípios: o risco maior recai sobre áreas periféricas, pequenas cidades ou regiões do interior do país, onde a vulnerabilidade social e institucional favorece os criminosos. agencia.ufc.br+2Correio Braziliense+2

Por que o fenômeno tende a se manter — ou até evoluir

Especialistas alertam que o Novo Cangaço não é um modismo passageiro: há fatores estruturais que favorecem a sua persistência e até expansão. Entre eles:

  • A facilidade de acesso a armas, munição e explosivos — muitas vezes via contrabando ― fortalece a capacidade bélica das quadrilhas. Voice of America+2O Globo+2
  • A desigualdade regional: municípios com menor presença do Estado, pobreza extrema, ausência de segurança, má infraestrutura — tornam-se alvos naturais. Correio Braziliense+2UOL Notícias+2
  • A profissionalização e corporativização do crime: quadrilhas “modernas”, com divisão de tarefas, planejamento e know-how — o que torna cada vez mais difícil o emprego de táticas tradicionais de combate. Revista Fórum Segurança+2UFC Brasil+2
  • A dinâmica econômica e financeira do país: uso crescente de meios eletrônicos de pagamento nas áreas de risco, deslocamento de bancos físicos para bancos digitais e fintechs — o que altera o cenário, mas não elimina o risco quando há dinheiro em espécie. Correio Braziliense+1

Sem políticas de segurança adequadas, planejamento estatal e mudanças estruturais profundas, o problema tende a se repetir — e a cada vez com maior ousadia e impacto.

Reflexões críticas: riscos à democracia, retorno do “sertão armado” e o estigma social

O crescimento do Novo Cangaço levanta questões graves sobre o controle do Estado, a fragilidade institucional e o impacto sobre comunidades vulneráveis.

  • Quando quadrilhas conseguem “tomar” uma cidade por horas, o Estado mostra suas fissuras — e isso gera desconfiança popular nas instituições de segurança.
  • A violência generalizada, a destruição e o medo intensificam a exclusão social, o êxodo regional e aprofundam desigualdades — principalmente no interior, onde comunitários já vivem com limitações.
  • A linguagem midiática — ao usar analogias com o “cangaço” — às vezes romantiza ou estigmatiza, reproduzindo preconceitos regionais ou simplificações históricas. Isso pode distorcer a compreensão sobre causas estruturais e soluções necessárias.
  • A tendência de subempregar termos polêmicos (ex.: “novo cangaço”, “terrorismo local”, “guerra urbana”) sem debate conceitual pode dificultar a formulação de políticas públicas adequadas e impedirá respostas eficazes que levem em conta contexto, prevenção, repressão e reconstrução social.

Em síntese

O “Novo Cangaço” — ou “Domínio de Cidades”, como preferem alguns analistas — não é apenas uma voltinha nostálgica aos bandos do sertão do século passado. É uma realidade concreta, brutal e em escala nacional, que expõe fragilidades do Estado, desigualdades estruturais e a crescente capacidade de criminalidade violenta organizada.

As quadrilhas que praticam essas invasões e saques são capazes de transformar noites de interior em zonas de guerra, com explosões, reféns, tiroteios e caos. Elas contam com planejamento, logística, armamento, mobilidade e frieza operacional — atributos de quem age com a disciplina de milícia, não com o improviso de criminosos comuns.

A resposta do Estado existe, mas enfrenta obstáculos: falta de estrutura em muitas regiões, coordenação insuficiente, diferenças entre estados, falta de inteligência preventiva e dificuldade em antecipar ações.

Para quem estuda segurança, crime organizado ou deseja informar e debater essas questões, o Novo Cangaço representa um dos maiores desafios contemporâneos. Compreender suas raízes, suas transformações e seus impactos não é apenas essencial — é urgente.

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