O pedido do governo do Rio aos EUA para classificar o CV como facção internacional revela interesses de sanções, cooperação e pressão geopolítica — e expõe o choque de definições entre Brasil e Washington.
Em 2025, o debate sobre segurança pública no Brasil ganhou uma nova escalada quando o governo do estado do Rio de Janeiro enviou a Washington um dossiê detalhado propondo que o Comando Vermelho (CV) fosse reconhecido como uma “organização criminosa transnacional” (TCO, na sigla em inglês) — e, idealmente, enquadrada sob regimes de sanções internacionais. CNN Brasil+2Vermelho+2 Essa tentativa revela não só a gravidade da ofensiva contra o crime organizado no Rio, mas também o apelo estratégico que o governo americano, hoje sob uma administração assumidamente dura com narcotráfico e imigração, encontra em expandir o uso de rotulações globais como arma diplomática e de lei.
O movimento do Rio e o dossiê entregue aos EUA
O relatório enviado ao governo dos Estados Unidos foi preparado pela inteligência da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, sob o argumento de que o CV não apenas opera internamente, mas teria conexões internacionais — sobretudo por causa da origem de parte do arsenal apreendido, e da alegada atuação da facção fora do país. CNN Brasil+2CNN Brasil+2 A própria secretaria afirma que a maioria dos fuzis retirados de confrontos e apreensões em 2024/2025 “vem dos EUA e estava nas mãos de criminosos do CV”. CNN Brasil
O objetivo explícito do governo do Rio seria ganhar apoio de agências americanas como a Drug Enforcement Administration (DEA), o Federal Bureau of Investigation (FBI), o Office of Foreign Assets Control (OFAC) e outros mecanismos internacionais — abrindo a possibilidade de sanções financeiras, rastreamento de fluxos ilícitos, extradições e cooperação intensificada. CNN Brasil+2CNN Brasil+2
Para o Estado fluminense, o movimento seria uma forma de “asfixiar o sistema financeiro” da facção e atingir o tráfico de armas e drogas de forma mais eficaz. CNN Brasil+1 A entrega desse dossiê ocorreu em outubro de 2025, segundo fontes próximas ao governo do Rio. CNN Brasil
A reação de Brasília — e a disputa de definições legais
Apesar da iniciativa do Rio, o governo federal, por meio do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e do ministro da Justiça, reiterou que não há intenção de classificar facções como “organizações terroristas” ou transnacionais. Gazeta do Povo+2Reuters+2 A razão central: a legislação brasileira exige motivação política, ideológica ou religiosa para tais rótulos — e as facções, segundo o governo, operam por lucro, não por ideologia. Gazeta do Povo+2Reuters+2
Para o governo federal, a distinção entre “facção criminosa” e “grupo terrorista” é essencial para preservar a coerência jurídica e evitar a banalização da noção de terrorismo. Gazeta do Povo+1
Esse choque de definições tornou-se visível no encontro de 6 de maio de 2025, quando representantes dos EUA apresentaram a proposta formal de designação, e os técnicos do MJSP responderam que, sob o ordenamento jurídico brasileiro, PCC e CV não podem ser tratados como terroristas ou TCOs. CNN Brasil+2CNN Brasil+2
Por que os EUA estão interessados na classificação — e o que a prática já mostra
Apesar da negativa do Brasil, a retórica americana sugere que há claro interesse em expandir seus instrumentos contra crime transnacional. Desde 2024, Washington tem utilizado a designação de “Transnational Criminal Organizations” (TCOs) e “Foreign Terrorist Organizations” (FTOs) para grupos de narcotráfico e crime organizado na América Latina, como forma de aplicar sanções financeiras, congelar bens, dificultar lavagem de dinheiro, cortar redes de financiamento e expandir cooperação internacional. O exemplo mais recente é o da Tren de Aragua (TdA), da Venezuela, sancionada pela U.S. Department of the Treasury / OFAC como TCO em julho de 2024 e como FTO em fevereiro de 2025. U.S. Department of the Treasury+2U.S. Department of the Treasury+2
Em 2025, a TdA continuou no foco dos EUA: altos dirigentes foram sancionados, a rede de apoio desmontada e recompensas foram oferecidas para captura de líderes. U.S. Department of the Treasury+2U.S. Department of the Treasury+2 Isso demonstra que, para Washington, a classificação funciona não apenas como símbolo, mas como vetor real de ação, com consequências financeiras, criminais e operacionais.
Por que o interesse americano pode incluir uma facção brasileira como o CV?
- Canais financeiros e lavagem de dinheiro: se há evidências de que o CV usa o sistema financeiro internacional — bancos, empresas, remessas —, a inclusão em listas de sanções permitiria bloquear seus ativos, just as tem feito com cartéis.
- Rastreamento de armas e tráfico internacional: com alegações de armas vindo dos EUA, um rótulo internacional facilitaria investigações e punições transnacionais.
- Cooperação com agencias americanas: FBI, DEA, OFAC e outras agências ganhariam base legal para atuar, aplicar sanções e coordenar prisões e extradições.
- Pressão diplomática e geopolítica: classificar grupos latino-americanos como TCOs ou FTOs permite aos EUA expandir seus interesses de segurança hemisférica, ligar narcotráfico a política migratória e projetar poder além de fronteiras.
Outro ponto de referência: especialistas e autoridades dos EUA já defendiam internalizar uma política mais agressiva contra organizações criminosas transnacionais, equiparáveis a grupos terroristas, o que explica a opção por usar o sistema de sanções e leis antiterrorismo. Holland & Knight+2U.S. Department of the Treasury+2
Os riscos e o debate dentro do Brasil — soberania, historiografia e consequências sociais
Do lado brasileiro, a agenda de rotular facções como terroristas ou transnacionais provoca resistências por motivos estruturais e conceituais. A legislação nacional distingue claramente crime organizado de terrorismo: a natureza dos atos é diferente — o terrorismo demanda motivações políticas, ideológicas ou religiosas; as facções atuam movidas por lucro, controle territorial e máfia do tráfico. Gazeta do Povo+2Reuters+2
Para críticos, essa tentativa de diálogo com os EUA representa um risco à soberania, uma porta aberta para pressões externas e eventual ingerência. Agência Brasil+2CNN Brasil+2 A adoção de um discurso de “narcoterrorismo” pode servir a agendas políticas domésticas — e a retórica, ao invés de promover justiça e segurança, pode mascarar uma retórica de guerra permanente. Extra Classe+1
Além disso, existe o perigo de criminalização ampla de comunidades submetidas à violência do Estado — o que, para muitos especialistas, seria a institucionalização da guerra contra o crime, com consequências graves em direitos humanos e políticas sociais. Extra Classe+2Agência Brasil+2
O precedente que os EUA já formaram — casos como o da Tren de Aragua
O caso da Tren de Aragua mostra concretamente como o aparato americano opera uma vez que a designação cai. A organização venezuelana passou a sofrer sanções via OFAC, teve líderes incluídos na lista de procurados do Federal Bureau of Investigation e viu recompensas sendo oferecidas por informações sobre seus comandos. U.S. Department of the Treasury+3U.S. Department of the Treasury+3U.S. Department of the Treasury+3
Além disso, o uso de rotulações como “transnacional” ou “terrorista” permite aos EUA negar acesso ao sistema financeiro global, cortar redes de lavagem de dinheiro, e criminalizar o apoio logístico ou financeiro a essas organizações — mesmo que as operações ocorram fora do território americano. U.S. Department of the Treasury+2Guias Práticos Globais+2
Esse precedente mostra que, se o CV fosse aceito como TCO ou equivalente, estaria sujeito a um conjunto de ferramentas muito mais potentes do que as normalmente usadas pelo Brasil: sanções, congelamento de ativos, cooperação internacional com DEA/FBI, pressão diplomática, vigilância de redes financeiras e migração.
Por que os EUA podem não ter interesse absoluto — variáveis práticas e custo-benefício
Apesar da retórica agressiva, a designação e sua efetivação não são automáticas nem asseguradas. A experiência com grupos como a TdA demonstra que os EUA demandam evidências robustas de atuação transnacional, nexos com o território americano — seja por lavagem de dinheiro, tráfico de armas ou células — e violações que afetem os EUA diretamente. U.S. Department of the Treasury+2U.S. Department of the Treasury+2
Se o dossiê brasileiro não comprovar com clareza esses nexos — por exemplo, ausência de evidência pública de operações do CV no sistema financeiro dos EUA ou de tráfico de armas diretamente para solo americano —, a utilidade prática da designação diminui consideravelmente para Washington.
Há também um custo diplomático e político: insistência em designar grupos de um importante parceiro latino-americano como terroristas pode alimentar críticas de ingerência, tensionar relações bilaterais e despertar retaliações diplomáticas. No Brasil, o governo federal já manifestou preocupação com a segurança jurídica e com o precedente que isso criaria para soberania nacional. Gazeta do Povo+2Agência Brasil+2
Além disso, mesmo que a designação ocorra, não existe garantia de que a mera rotulação resultará em ações efetivas: sanções podem ser contornadas, redes financeiras são resilientes e o tráfico internacional se adapta rapidamente.
O que está em jogo no plano doméstico e geopolítico
Para o Rio de Janeiro e autoridades que defendem a medida, a aposta é dupla: interna — enfraquecer o CV com sanções, extradições e corte de recursos; externa — mobilizar o poder americano de repressão e controle transnacional. É uma aposta em cooperação, dinheiro, alcance global.
Para os Estados Unidos, aceitar o pedido significaria ampliar seu escopo de atuação contra crime organizado na América Latina, com ferramentas de sanções financeiras, migração, investigação e repressão — alinhando a guerra às drogas à luta contra o “terrorismo internacional” e integrando segurança hemisférica, imigração, crime e geopolítica num mesmo pacote.
Para o Brasil, isso implica riscos de soberania, de convivência jurídica delicada, e de internalização de uma lógica de guerra permanente em favelas e periferias. A rua e o impacto social dificilmente se reduzem a debates técnicos e rótulos.
Conclusão: a designação do CV ainda depende mais de narrativa que de evidência — mas revela o jogo geopolítico em curso
A tentativa do governo do Rio de Janeiro de levar o CV aos corredores de Washington não significa que a facção vencerá um rótulo oficial. Mas revela algo maior: a guerra às drogas e ao crime organizado no século XXI se confunde com diplomacia, geopolítica e poder financeiro internacional.
Se os EUA decidirem aceitar, estarão não só aplicando sanções, mas legitimando uma estratégia de uso global de “terrorismo” como arma contra redes criminosas. Se recusarem, mantêm o foco prático em cartéis que já demonstraram atuação transnacional, minimizando desgaste diplomático.
Para o Brasil, impor tal classificação exigiria rever leis, arriscar soberania e aceitar consequências domésticas — muita violência, controvérsias judiciais, debates sobre direitos humanos e poder militarizado nas periferias.
No fim, o que está em disputa não é apenas o destino de uma facção, mas a arquitetura estratégica de luta contra o crime: nacional ou global, militar ou jurídica, local ou internacional. O CV pode ser apenas o primeiro teste de um novo capítulo nessa história — e a resposta, por enquanto, permanece aberta.