A ANATOMIA SECRETA DO CV ATRÁS DAS GRADES E POR QUE O ESCTADO NUNCA CONSEGUIU RECUPERAR O CONTROLE
O Comando Vermelho (CV) nasceu atrás das grades e, ao contrário de outras facções brasileiras que se expandiram para dentro dos presídios depois de surgirem nas ruas, desenvolveu sua inteligência organizacional a partir da convivência forçada entre presos comuns e presos políticos durante a ditadura militar na década de 1970. Seu DNA é prisional. Seu primeiro território foi a cela, não o morro. E isso moldou a lógica de disciplina, moral interna e punições que, até hoje, sustentam sua capacidade de operar tanto dentro quanto fora dos muros.
Fontes como o Núcleo de Estudos da Violência da USP, relatórios do Ministério da Justiça, estudos acadêmicos (NEV, IDB, CNMP) e reportagens como as da CNN Brasil e de instituições internacionais mostram que o domínio do CV dentro dos presídios é estruturado em três pilares: a crise crônica do sistema penitenciário brasileiro, a capacidade da facção de preencher o vácuo deixado pelo Estado e o uso de códigos internos de disciplina que substituem a lei formal por uma gramática de poder própria.
A seguir, um panorama detalhado, com base nessas fontes, sobre como o Comando Vermelho construiu e mantém sua governança paralela nas unidades prisionais.
O SISTEMA PROMOVE O REI: COMO O ESTADO CRIOU O AMBIENTE IDEAL PARA O COMANDO VERMELHO
Estudos do NEV-USP e análises como “O Sistema Penitenciário Brasileiro e o Surgimento das Facções Criminosas” (Jus.com.br) convergem para uma conclusão inequívoca: o sistema prisional brasileiro é a principal incubadora das facções. Superlotação, ausência de agentes suficientes, celas sem qualquer separação entre condenados e provisórios, presos de alta periculosidade dividindo espaços com réus primários e uma infraestrutura precária alimentam a necessidade de uma “ordem alternativa”.
Quando o Estado é incapaz de garantir direitos básicos ou até mesmo a segurança física dos detentos, surge um vácuo. E onde há vácuo, há disputa para preenchê-lo. O Comando Vermelho entendeu isso antes de todos.
Pesquisadores como Vanessa Galvão Herculano (CNMP) apontam que, nas décadas de 1980 e 1990, enquanto o Estado se limitava a reagir de forma repressiva sem atacar a raiz estrutural do problema, o CV se consolidou como uma instituição paralela: distribuindo favores, garantindo proteção e impondo uma legislação própria que, embora violenta, oferecia previsibilidade. Algo que o Estado jamais conseguiu no sistema prisional.
A superlotação e a falta de controle não apenas facilitaram a expansão da facção: elas a legitimaram internamente.
OS CÓDIGOS QUE REGEM A CELA: O “ESTATUTO NÃO ESCRITO” DO COMANDO VERMELHO
O CV não opera com um estatuto público como o PCC, mas mantém regras rígidas transmitidas oralmente, testadas em décadas de convivência forçada. Fontes como o relatório do Ministério da Justiça e análises do IDB (Inter-American Development Bank) destacam que, desde seu surgimento, a facção adotou elementos da militância política aprendida com presos políticos, combinados com regras de convivência típicas do submundo carcerário da época.
Entre os princípios mais citados por pesquisadores e ex-detentos está a obrigação de:
• proteger aliados e manter a lealdade ao coletivo
• colaborar com a “caixinha”, fundo financeiro comum
• respeitar familiares dos presos acima de qualquer conflito
• não praticar crimes considerados desleais dentro da cadeia, como furtar parceiros
• cumprir funções definidas pela liderança
• evitar conflitos internos sem autorização
Essas regras formam uma espécie de contrato social criminal. Não são sugestões; são mandamentos.
Quem viola, paga. E paga caro.
PUNIÇÃO COMO LINGUAGEM: A “JUSTIÇA INTERNA” DO CV
Dentro do modelo de governança paralela, o CV aplica um sistema de punições que substitui a sanção estatal por mecanismos internos. As punições mais comuns variam de advertências verbais a agressões, passando por “correções coletivas” e, em casos extremos, execuções sumárias.
A lógica da punição não é somente disciplinar. É pedagógica. Serve para comunicar à massa prisional que a ordem da facção é absoluta e que a cadeia tem dono.
Análises do NEV e do CNMP ressaltam que esse tipo de normatividade interna não apenas controla comportamentos, mas também regula o comércio interno, a circulação de drogas, a redistribuição de produtos e até conflitos pessoais.
Ao contrário do que se imagina, a punição extrema não é aleatória. Ela segue critérios internos que visam preservar a estabilidade da facção e impedir dissidências.
GOVERNANÇA SERVIÇAL: PROTEÇÃO, FINANÇAS E ASSISTÊNCIA COMO FERRAMENTAS DE PODER
Pesquisas e relatórios do Ministério da Justiça indicam que o CV estruturou dentro dos presídios um sistema financeiro coletivo chamado “caixa comum” ou “caixinha”, abastecido por contribuições dos presos e por lucros externos do tráfico. Esse fundo paga:
• advogados
• assistência a familiares
• medicamentos e itens de higiene
• resgates e fugas
• apoio a detentos recém-chegados
Esse mecanismo cria dependência e fortalece o vínculo da base com a facção. Sem o Estado para oferecer serviços, o CV os substitui, fortalecendo a própria legitimidade.
Esse sistema ainda cumpre um papel de recrutamento: quem recebe ajuda passa a dever lealdade. E lealdade, dentro de uma cadeia dominada pelo CV, não é facultativa.
DA CELA PARA O TERRITÓRIO: COMO O PODER INTERNO TRANSBORDOU PARA AS RUAS
Estudos como “Brazilian Paradox: How Gangs Grow Stronger in Prisons” (IDB) e reportagens da CNN Brasil mostram que o modelo interno do CV, criado atrás das grades, foi exportado para o tráfico nas favelas do Rio. A hierarquia, a disciplina rígida e a ideia de coletividade se reproduziram externamente.
As ordens continuam fluindo de dentro dos presídios para fora, por meio de celulares, advogados e familiares. A cadeia é o centro nervoso da organização. A rua é apenas o palco onde sua estratégia se manifesta.
Isso explica por que operações policiais de grande impacto, que prendem dezenas de lideranças, raramente resultam na queda da facção. Prender líderes do CV significa devolvê-los ao terreno onde são mais fortes.
POR QUE O ESTADO AINDA NÃO RETOMOU O CONTROLE
As fontes analisadas convergem em três diagnósticos:
- O sistema penitenciário permanece superlotado e mal gerido.
A crise é estrutural e contínua. Dela depende o poder das facções. Enquanto o Estado não conseguir oferecer o mínimo, a governança paralela persiste. - As remoções e transferências desarticulam lideranças, mas não o modelo.
O CV funciona como rede, não como pirâmide rígida. Mudar líderes de unidade não altera o sistema de disciplina. - Faltam políticas de longo prazo.
Relatórios do WOLA e do IDB alertam que o Brasil atua de forma reativa, não preventiva. A cada rebelião, cria-se uma solução emergencial. Mas nunca uma reforma profunda.
O resultado é um paradoxo: quanto mais o Estado tenta reagir com força bruta, mais fortalece a lógica da facção.
O QUE AS FONTES REVELAM SOBRE O FUTURO DO CV NOS PRESÍDIOS
As pesquisas analisadas sugerem que a influência do CV tende a se manter por três razões-chave:
• continuidade da crise penitenciária
• capacidade do CV de renovar sua base e reproduzir sua lógica interna
• ausência de políticas públicas que substituam os serviços que a facção presta
Enquanto o Estado não oferecer defesa, mediação de conflitos, assistência jurídica mínima, saúde básica e condições dignas, o CV continuará sendo o árbitro invisível.
A cadeia, nesse contexto, não é um lugar de confinamento. É um centro de comando.
CONCLUSÃO: A PRISÃO COMO FONTE E NÃO COMO FREIO DO PODER DO CV
O Comando Vermelho cresceu exatamente onde deveria desaparecer: dentro das prisões. E cresceu porque o Estado abriu mão do controle. O sistema prisional brasileiro não neutraliza o crime organizado; alimenta sua estrutura. O CV se tornou, por meio de disciplina rígida, códigos internos e punições exemplares, uma instituição mais estável e previsível para os presos do que o próprio Estado.
Ignorar esse fenômeno é perpetuar o ciclo que fez do Brasil um dos maiores produtores de facções do mundo. Enfrentá-lo exige não só repressão, mas reforma profunda. Até lá, a cadeia continuará sendo o lugar onde o poder do Comando Vermelho se fortalece, se organiza e se renova.