A origem em chamas: quando a ditadura criou, sem querer, o maior sindicato do crime do Brasil
Poucos capítulos da história criminal brasileira são tão marcados por ironias trágicas quanto o surgimento do Comando Vermelho (CV). A facção que se tornaria o mais duradouro e influente grupo criminoso do país nasceu não na selva urbana do Rio de Janeiro, mas dentro das paredes de um dos ambientes mais controlados pelo Estado durante a ditadura militar: a cadeia de Ilha Grande, onde presos comuns e presos políticos foram misturados deliberadamente pelo regime. Essa convivência forçada — documentada em pesquisas como O Comando Vermelho e a Ordem Mundial, de Dirceu Ricardo Lemos Ceccatto — acabou criando um laboratório involuntário de aprendizagem mútua: enquanto os presos comuns absorviam noções de disciplina, solidariedade, formação de células e resistência, os presos políticos descobriam como funcionava o submundo carcerário e sua lógica brutal. O resultado desse cruzamento improvável foi a formação de um coletivo que inicialmente se intitulava “Falange Vermelha”.
Segundo o relatório Red Command (InSight Crime), disponível em:
https://www.justice.gov/sites/default/files/eoir/legacy/2014/09/29/red_command.pdf
o CV emergiu como um grupo cuja estrutura organizacional refletia valores aprendidos com militantes de esquerda, mas cuja finalidade era pragmática: sobreviver à violência estatal e maximizar ganhos econômicos através de atividades ilícitas. A repressão desordenada e a superlotação prisional criaram o ambiente perfeito para essa fusão. Na década de 1980, com a anistia e o esvaziamento das prisões políticas, o CV se transformou definitivamente em uma facção criminal profissional.
A transição entre “coletivo de sobrevivência” e “organização criminosa” foi acelerada por dois fatores. Primeiro, a progressiva entrada do grupo no mercado de drogas, conforme detalhado no estudo Primeiro Comando da Capital and Comando Vermelho: Genesis, Evolution and Their Impact through Narco-culture (Kamil Jański, 2022):
https://journals.akademicka.pl/adamericam/article/view/3246
Segundo, a capacidade crescente de impor disciplina interna e criar redes de solidariedade entre unidades prisionais. Em outras palavras, aquilo que deveria ser punição se tornou incubadora.
Da cadeia para o morro: a transformação do CV em poder paralelo territorial
Ao sair da prisão, líderes e membros do Comando Vermelho levaram consigo a disciplina aprendida e um método: controlar territórios, impor regras, administrar conflitos e financiar operações através da venda de cocaína e maconha. A expansão para as favelas do Rio de Janeiro criou um novo tipo de governança criminal, uma estrutura híbrida entre Estado paralelo, milícia informal e empresa ilegal.
O capítulo Comando Vermelho of Nova Holanda — parte da obra Inside Criminalized Governance, da Cambridge University Press:
https://www.cambridge.org/core/books/inside-criminalized-governance/comando-vermelho-of-nova-holanda/E09B250F636F69DDF98C8955BE85FBAB
mostra como o CV passou a exercer funções estatais em territórios marcados por ausência institucional. Não se tratava apenas de vender drogas, mas de impor normas: toque de recolher, tribunais improvisados, controle de conflitos, proteção de moradores e, por vezes, fornecimento de serviços como gás, TV clandestina e transporte interno.
Esse modelo de governança criminal se espalhou rapidamente por comunidades como Jacaré, Manguinhos, Complexo da Maré e, sobretudo, Complexo do Alemão. O controle territorial era tão absoluto que o acesso de agentes do Estado passou a ser sistematicamente repelido a tiros — gerando a escalada de violência que marcaria décadas seguintes.
Reportagens como Comando Vermelho: The Most Powerful Brazil Gang Targeted in Rio Raids (NDTV):
https://www.ndtv.com/world-news/comando-vermelho-the-most-powerful-brazil-gang-targeted-in-rio-raids-9555903/amp/1
explicam como, a partir dos anos 1990, a facção se tornou “símbolo do tráfico carioca”, assumindo papel dominante nas rotas que conectavam a Bolívia e a Colômbia ao Porto do Rio. Essa estrutura territorial permitiu ao CV sobreviver a prisões, mortes de líderes e operações policiais.
A década que mudou tudo: cocaína, armas e globalização criminosa
Enquanto a polícia mantinha foco em operações pontuais, o Comando Vermelho se profissionalizava. A facção compreendeu rapidamente que o tráfego internacional — mais lucrativo, menos arriscado e extremamente complexo — exigia parcerias logísticas com cartéis estrangeiros e controle disciplinado da base local.
O artigo Comando Vermelho, a criminal organization focused on drug trafficking with 30,000 members (EL PAÍS, 2025):
https://english.elpais.com/international/2025-10-30/comando-vermelho-a-criminal-organization-focused-on-drug-trafficking-with-30000-members.html
estima que o CV chegou a reunir cerca de 30 mil integrantes diretos e indiretos, incluindo olheiros, vapores, soldados, aviões e operadores de logística internacional. Essa expansão não foi apenas numérica — foi estrutural. O CV passou a adquirir armas automáticas, lançar redes de lavagem de dinheiro e treinar quadros para ocupação duradoura de territórios.
Documentos analisados em The Efforts to Combat Organized Crime in Brazil (Edyta Chwiej et al., Anuário Latino-Americano):
https://journals.umcs.pl/al/article/download/10223/7152
reforçam que as facções brasileiras, especialmente o CV, passaram a operar com uma lógica empresarial transnacional: rotas, custos, riscos, investimentos, sucursais e alianças táticas com grupos na Bolívia, Paraguai, Colômbia e Venezuela.
Esse processo impulsionou a rivalidade com o PCC (Primeiro Comando da Capital). O estudo de Jański descreve como o PCC conseguiu superar o CV em influência nacional, mas nunca eliminou sua força no eixo Norte–Nordeste e no Rio de Janeiro. O CV resistiu com mais fragmentação, porém com forte cultura interna e tradição territorial.
Controle social, violência e legitimidade: o CV como governo paralelo
Nas análises da Cambridge University Press sobre a Maré, a facção aparece como “agente regulador de conflitos”. A expressão não busca elogiar, mas sim retratar empiricamente o fenômeno: em regiões sem presença efetiva do Estado, o CV tornou-se mediador de disputas, aplicador de penas e controlador de comportamentos.
Esse tipo de governança inclui:
- punição de crimes locais, como estupro ou roubo interno;
- controle do horário de funcionamento de comércios;
- autorização de eventos culturais;
- mediação de brigas familiares;
- aplicação de castigos físicos ou execuções para manter disciplina.
O que torna esse modelo duradouro é a combinação de coerção armada com certo grau de “ordem previsível”. Estudos de campo como os de Nicholas Barnes mostram que, em muitos casos, moradores veem o CV como menos arbitrário que o Estado, porque exerce presença constante — enquanto o aparato estatal aparece apenas em incursões violentas.
Essa relação ambígua entre moradores e facção explica por que políticas de pacificação falharam: o Estado entrou sem oferecer serviços duradouros; o CV recuou temporariamente, mas voltou quando a presença estatal se esvaziou.
O auge e a fragmentação: os anos 2010 e 2020
As UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), criadas a partir de 2008, fragilizaram o CV por um breve período. Mas a política enfraqueceu rapidamente, e o vácuo de poder gerado pela retirada dos investimentos sociais abriu espaço para o retorno da facção.
O relatório Red Command já registrava há anos a tendência histórica do CV de adaptar-se mais rapidamente a adversidades do que seus rivais. O modelo distribuído da facção — com forte autonomia de células — facilitou sua sobrevivência mesmo após perdas estratégicas.
No entanto, o avanço do PCC no Norte do país gerou uma guerra sangrenta, com massacres em presídios do Amazonas, Acre e Roraima. Essa ruptura histórica entre CV e PCC marca um divisor de águas. Desde então, o CV:
- reforçou alianças com facções regionais menores;
- intensificou presença no tráfico internacional;
- buscou reocupar territórios perdidos no Rio;
- ampliou operações na fronteira com a Venezuela.
Reportagens como as do EL PAÍS e NDTV destacam que o CV já opera como ator transnacional, com influência em rotas de cocaína que passam pelo Caribe e pela costa africana.
O futuro do Comando Vermelho: internacionalização e nova geração de lideranças
Segundo especialistas como Jański e Barnes, o CV está passando por uma mutação estrutural: líderes históricos faleceram ou estão presos, e jovens quadros — mais conectados ao comércio global e menos presos às tradições da “ética carcerária” original — estão assumindo o comando.
Essa mudança apresenta riscos:
- mais profissionalização logística;
- maior integração com redes internacionais de lavagem de dinheiro;
- fragmentação interna e surgimento de sub-facções;
- ampliação do uso de tecnologias de criptografia, drones e inteligência financeira.
Se nas décadas passadas o CV era símbolo de “morro, fuzil e cocaína”, hoje é cada vez mais um agente de fluxos globais, com operações diversificadas e presença em múltiplos países.
O estudo O Comando Vermelho e a Ordem Mundial explica essa transformação como parte de uma tendência global: grupos criminosos se comportando como corporações transnacionais em mercados ilícitos fluidos.
Conclusão: o Comando Vermelho como espelho da falência do Estado brasileiro
O Comando Vermelho não sobreviveu por cinco décadas apenas pela violência, mas porque ocupou sistematicamente espaços deixados pelo Estado. A facção aprendeu com presos políticos a disciplinar sua estrutura, aprendeu com o mercado ilegal a financiar suas atividades e aprendeu com o abandono estatal a impor regras e oferecer “serviços” — ainda que pela força.
As fontes analisadas convergem para a mesma tese: o CV não é apenas um grupo criminoso, mas uma expressão histórica, política e econômica da desigualdade brasileira. Enfrentá-lo vai muito além de operações policiais. Exige reconstrução institucional, ocupação permanente do Estado em territórios vulneráveis, redesenho do sistema prisional e estratégias de cooperação internacional contra o tráfico.
Enquanto essas ações não forem implementadas, o Comando Vermelho continuará a se reinventar — e a ditadura que o criou continuará assombrando o Brasil.
Fontes Utilizadas
- Jański, Kamil – Primeiro Comando da Capital and Comando Vermelho: Genesis, Evolution and Their Impact through Narco-culture
https://journals.akademicka.pl/adamericam/article/view/3246 - Ceccatto, Dirceu Ricardo Lemos – O COMANDO VERMELHO E A ORDEM MUNDIAL
https://www.gti.uniceub.br/relacoesinternacionais/article/viewFile/166/285 - Barnes, Nicholas – Comando Vermelho of Nova Holanda, in Inside Criminalized Governance – Cambridge University Press
https://www.cambridge.org/core/books/inside-criminalized-governance/comando-vermelho-of-nova-holanda/E09B250F636F69DDF98C8955BE85FBAB - InSight Crime – Red Command (CV) Report
https://www.justice.gov/sites/default/files/eoir/legacy/2014/09/29/red_command.pdf - EL PAÍS – Comando Vermelho, a criminal organization focused on drug trafficking with 30,000 members
https://english.elpais.com/international/2025-10-30/comando-vermelho-a-criminal-organization-focused-on-drug-trafficking-with-30000-members.html - NDTV – Comando Vermelho: The Most Powerful Brazil Gang Targeted in Rio Raids
https://www.ndtv.com/world-news/comando-vermelho-the-most-powerful-brazil-gang-targeted-in-rio-raids-9555903/amp/1 - Chwiej, Edyta et al. – The Efforts to Combat Organized Crime in Brazil
https://journals.umcs.pl/al/article/download/10223/7152