Da cela superlotada ao controle de rotas de cocaína e de recursos rastreados em fundos e escritórios de São Paulo — a evolução do PCC em poder organizado e rede transnacional
O Primeiro Comando da Capital (PCC) emergiu de um contexto de violência e superlotação carcerária e tornou‑se, nas últimas décadas, a maior facção criminal da América Latina. A trajetória vai de uma célula formada por oito presos em Taubaté a uma organização com ramificações que, segundo investigação da Polícia Federal em 2025, movimentou recursos em ao menos 28 países, conectando-se a rotas de cocaína vindas da Bolívia e do Paraguai e a circuitos financeiros que chegam à Avenida Faria Lima, em São Paulo.
Das chamas do Carandiru ao pacto em Taubaté
O massacre do Carandiru, em 2 de outubro de 1992, deixou 111 mortos e marcou profundamente o sistema prisional paulista. No ano seguinte, em 31 de agosto de 1993, oito detentos reuniram‑se no anexo da Casa de Custódia de Taubaté e fundaram o que viria a ser o PCC. A reunião, inicialmente prevista para uma partida de futebol, acabou se transformando num pacto de sangue: relatos de pesquisadores e jornalistas descrevem um episódio de violência que consolidou a autoridade dos fundadores dentro do presídio.
O grupo buscava dominar a rotina interna das cadeias — de disciplina a controle de conflitos — e estabelecer uma estrutura de comando. A expansão começou dentro dos muros, mas rapidamente encontrou canais para agir fora, articulando tráfico, cobranças e formas de governança paralela em comunidades.
Do estatuto à influência externa: regras, punição e contato com a máfia italiana
Em 1997, Mizael Aparecido redigiu o primeiro estatuto formal do PCC, com artigos que institucionalizavam regras internas: proibição de delação, combate a traições e punições severas para infrações. A expressão “cortado do comando”, usada no jargão da facção, passou a designar sentenças de morte para quem violasse essas normas.
No início, a facção também assimilou práticas externas. Presos italianos ligados à Camorra, como Bruno e Renato Torsi, introduziram técnicas organizacionais e contatos que, com o tempo, se tornaram laços com grupos europeus como a ’Ndrangheta — uma conexão apontada por pesquisadores como parte da estratégia de internacionalização do tráfico.
Ruptura, ascensão de Marcola e profissionalização
Uma rebelião em 1999 na Casa de Custódia de Taubaté marcou o fim da liderança original: líderes como Da Fé e Bicho Feio foram mortos em disputa interna, e uma nova geração assumiu o comando. O nome mais associado à transformação do PCC é o de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, que, mesmo preso desde 2002, arquitetou um redesenho da organização.
Marcola implantou um modelo dividido em “Sintonias” — áreas responsáveis por finanças, logística, inteligência e comunicação — que permitiu maior resiliência: a facção passou a operar com células autônomas, mantendo coesão por meio de disciplina e rotinas burocráticas internas. A adoção de métodos de guerrilha e de organização em rede também foi influenciada por contatos dentro do sistema prisional, entre eles o ex‑militante chileno Maurício Hernández Norambuena, o “Capitão Ramiro”, que compartilhou táticas de clandestinidade e simbolismo organizacional.
Estrutura dupla: o “sistema” das cadeias e a “rua” externa
Relatórios de promotorias e grupos de investigação descrevem o PCC como um “Estado clandestino”. Internamente, a facção controla a rotina carcerária por meio de representantes chamados “gerais de cadeia” e coordenação centralizada — a Sintonia Geral dos Presídios. A comunicação dentro dos presídios usa códigos: advogados e intermediários transmitem ordens e recados conhecidos como “salves” e “gravatas”, enquanto relatórios semanais — os “Resumo” — atualizam o comando sobre finanças e disciplina.
Na rua, o PCC regula o tráfico, media conflitos entre gangues e mantém caixas centrais de arrecadação, referidos nos subterrâneos como “Livro” ou “B.O.”. A hierarquia funciona com cadeia de comando clara, mas com células capazes de atuar autonomamente quando líderes são presos ou eliminados.
Disciplina, narrativa e poder paralelo
A facção impõe um código moral seletivo nas áreas sob sua influência: proibições a furtos locais, violência contra mulheres e crimes contra crianças são promovidas como normas de convivência, ao mesmo tempo em que o grupo lucra com o narcotráfico e executa punições sumárias contra dissidentes. Em muitos bairros, moradores recorrem ao chamado “tribunal do crime” para resolver disputas, um mecanismo que reforça a percepção de autoridade do grupo.
Além disso, o PCC construiu uma narrativa de resistência que o apresenta, em mensagens interceptadas, como “voz dos oprimidos” — discurso que fortalece laços internos e justifica a atuação de uma governança paralela que oferece cestas básicas, festas e apoio às famílias de presos, trocando serviços por lealdade.
Internacionalização e o desafio às instituições
A investigação da Polícia Federal em 2025 revelou que recursos financeiros atribuídos ao PCC cruzaram fronteiras, chegando a 28 países. Esse movimento expõe como a facção se conectou não apenas a rotas tradicionais da cocaína — com origem sobretudo na Bolívia e no Paraguai —, mas também a circuitos financeiros complexos, onde fundos e investimentos tornam mais difícil rastrear a origem do dinheiro.
O contraste entre a Avenida Faria Lima, símbolo de capitais e serviços legais, e as rotas do narcotráfico evidencia o desafio de separar economia lícita e ilícita num mercado globalizado. As autoridades enfrentam um inimigo adaptável: quando um setor da organização é atingido, outro se reorganiza, segundo investigadores. A combinação de disciplina interna, estrutura burocrática e contatos internacionais torna o PCC uma organização resiliente e multifacetada.
Hoje, o PCC permanece enraizado no sistema prisional — berço e trono de seu poder —, e sua capacidade de influenciar o espaço urbano e as finanças transnacionais segue sendo um dos principais desafios para políticas públicas de segurança, justiça e combate ao crime organizado.
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