Como grupos paramilitares dominaram bairros inteiros, capturaram mercados bilionários e se tornaram o maior poder paralelo do Rio de Janeiro
A presença das milícias no Rio de Janeiro deixou de ser um desvio tático dentro do universo criminal para se tornar um modelo consolidado de governança violenta e lucrativa. A expansão dessas organizações, sua integração às dinâmicas do mercado urbano e sua infiltração no sistema político constituem um dos fenômenos mais complexos da segurança pública brasileira. A literatura recente revela um diagnóstico convergente: estamos diante de entidades que combinam empresa, grupo armado e máquina política. Essa hibridez permite a captura de territórios inteiros, onde os moradores vivem sob um regime disciplinar que substitui o Estado e transforma a cidade em um ativo explorável.
A engenharia do poder miliciano
O ponto de partida para compreender o fenômeno é reconhecer que as milícias não são “autodefesas” nem “segurança comunitária”. Estudos como o de Daniel Hirata e colaboradores (2022), publicado no Journal of Illicit Economies and Development, mostram a evolução da milícia para um modelo empresarial criminoso, sustentado por uma lógica econômica diversificada.
Link: https://jied.lse.ac.uk/articles/140
Segundo os autores, esse modelo é sustentado pelo controle sistemático de mercados urbanos como TV clandestina, transporte alternativo, fornecimento de gás, segurança privada e, mais recentemente, grilagem, loteamento ilegal e construção civil. O relatório da Global Initiative (Sampaio & Pope, 2024) reforça que essa expansão ocorreu em áreas de crescimento urbano rápido e baixa capacidade estatal de regulação.
Link: https://globalinitiative.net/analysis/coercive-brokers-militias-rio
O território sob domínio miliciano funciona como uma concessão privada. Os grupos decidem quem pode construir, vender, habitar, circular ou empreender. A revista Mercator (2024) chamou essa lógica de “forma miliciana”: uma nova síntese entre espaço urbano e poder armado, em que milícias atuam como operadores urbanos ilegais.
Link: https://www.scielo.br/j/mercator/a/9nbCGs7dyz6rydHzs4tTKyN
As raízes históricas e o mito da “paz violenta”
A fase inicial da expansão miliciana, entre 2006 e 2008, foi analisada em profundidade por Michelle Airam da Costa Chaves (2018). Seu estudo revela como esses grupos se beneficiaram de apoio político, omissão institucional e um discurso de “ordem” para ocupar amplos territórios.
Link: https://revistas.uepg.br/index.php/tel/article/view/12419
O discurso do “mal menor”, frequentemente associado às milícias, criou a ilusão de que elas trariam estabilidade ao substituir facções tradicionais. Mas essa narrativa foi desmontada por pesquisas recentes. Em Frontiers in Political Science (2024), uma análise feminista expõe que a suposta “paz cotidiana” das áreas dominadas é sustentada por violência estrutural, repressão moral, punições extrajudiciais e controle de gênero.
Link: https://doaj.org/article/40eb87cfacec4e6e8b5da0c3863f1383
Essa reflexão demonstra que a “paz” miliciana não corresponde à ausência de violência, mas à normalização de um regime de controle permanente.
Estado, impunidade e a zona cinzenta institucional
A literatura também evidencia que a relação entre milícias e Estado é estrutural, não acidental. O relatório do Transnational Institute (Blickman, Ribeiro & Oliveira, 2010) documenta como agentes públicos alimentaram as milícias desde sua origem, permitindo a erosão do monopólio estatal da força.
Link: https://www.tni.org/en/publication/the-impact-of-militia-actions-on-public-security-policies-in-rio-de-janeiro
Carlos Gilberto Martins Junior (2022) avança sobre o tema ao argumentar que a arquitetura institucional da segurança pública fluminense criou um ambiente ideal para o surgimento e fortalecimento desses grupos. A falta de controle interno, a autonomia de segmentos armados e a tolerância política formaram a “zona cinzenta” na qual a milícia prospera.
Link: https://ojs.sites.ufsc.br/index.php/avant/article/view/6563
Nesse contexto, a impunidade não é falha; é condição operacional do modelo miliciano.
Redes sociais, capital político e governança criminosa
O estudo de Vinicius Assis Couto e Claudio Beato Filho (2019) lança luz sobre o caráter reticular das milícias. Com base em análise de redes sociais, os autores mostram que esses grupos formam teias que conectam políticos, empresários, policiais, comerciantes e lideranças comunitárias.
Link: https://rbs.sbsociologia.com.br/rbs/article/view/480
As milícias se articulam não apenas como gangues, mas como estruturas político-sociais que mobilizam votos, pressionam instituições e capturam serviços públicos. José Cláudio Souza Alves e Antonio Fuentes Díaz (2023) reforçam essa perspectiva ao comparar Rio de Janeiro e Michoacán (México): em ambos os casos, grupos armados evoluíram para formas de governança violenta.
Link: https://revistas.ufrj.br/index.php/dilemas/article/view/52506
Essa governança paralela inclui mediação de conflitos, cobrança de taxas, regras morais e imposição de disciplina social. O território miliciano não é apenas dominado: ele é administrado.
Mercado imobiliário, expansão urbana e a nova fronteira econômica
O mercado imobiliário é hoje uma das principais fontes de capital miliciano. O relatório de Sampaio & Pope (2024) detalha como grupos ocupam áreas, criam loteamentos clandestinos, vendem casas e controlam obras.
Link: https://globalinitiative.net/analysis/coercive-brokers-militias-rio
Essa economia urbana ilícita dialoga com os achados de Hirata et al. (2022), que mapeiam a expansão miliciana ao longo de eixos urbanos estratégicos: regiões onde a ausência do Estado coincide com oportunidades de lucro imobiliário e de captura de infraestrutura.
Link: https://jied.lse.ac.uk/articles/140
A milícia não apenas controla o território: ela o produz, construindo uma cidade paralela.
Milícias x facções: quem domina o território?
O Small Wars Journal publicou, em 2022, uma nota técnica de Sullivan, Bunker e Cruz que mostra que as milícias superaram facções como Comando Vermelho e Terceiro Comando em extensão territorial.
Link: https://smallwarsjournal.com/2022/09/28/third-generation-gangs-strategic-note-no-51-milicias-militias-continue-surpass-gangues
Segundo o relatório, isso ocorreu porque as milícias não dependem de um único mercado ilícito. Sua diversificação econômica — gás, transporte, construção, imóveis, internet, segurança, extorsão — permitiu resiliência e crescimento acelerado.
Enquanto facções controlam soldados, milícias controlam moradores.
A forma miliciana: onde o urbano e o criminal se fundem
O conceito de “forma miliciana” apresentado pela Mercator (2024) articula elementos centrais da urbanização contemporânea com a violência organizada.
Link: https://www.scielo.br/j/mercator/a/9nbCGs7dyz6rydHzs4tTKyN
Os territórios sob domínio miliciano tornam-se espaços reorganizados por agentes armados que produzem normas, infraestrutura, economia e relações sociais. É um regime no qual a milícia atua como Estado territorializado, com regras próprias e legitimidade imposta.
Essa morfologia urbana produz bairros que funcionam como zonas concessionárias da criminalidade.
Controle social e violência invisível
O artigo publicado em Frontiers in Political Science (2024) aprofunda a discussão sobre a dimensão moral e disciplinar do poder miliciano.
Link: https://doaj.org/article/40eb87cfacec4e6e8b5da0c3863f1383
Segundo a autora, as milícias exercem controle sobre comportamentos, relações pessoais, gênero e circulação — práticas que raramente surgem na imprensa, mas definem o cotidiano das comunidades sob seu domínio.
A ordem miliciana opera como vigilância permanente, produzindo uma sociedade regulada pelo medo.
O futuro do fenômeno
A soma dos estudos aponta que as milícias não são uma distorção temporária. Elas se tornaram parte estrutural das falhas urbanas, econômicas e institucionais do Rio. Qualquer projeto de combate precisa atacar não apenas a dimensão armada, mas os circuitos econômicos e políticos que sustentam esse modelo.
Entre os requisitos estratégicos:
- Regulação dura do mercado imobiliário.
- Reforma profunda das forças de segurança.
- Políticas urbanas que reduzam dependência de serviços ilegais.
- Punição a agentes públicos envolvidos.
- Combate aos mercados ilícitos que financiam a estrutura miliciana.
Sem isso, a tendência é de crescimento contínuo e aprofundamento do poder paralelo.
The Fallout Brasil – Editorial